sexta-feira, 11 de março de 2011

Infidelidades - Parte 5/5


Continuação da parte 4

“(…) Há três anos, logo a seguir ao meu aborto, anunciei que tinha uma coisa importante para te dizer. Lembras-te? Talvez devesse ter sido mais sincera contigo. Se o tivesse feito, quem sabe se tudo isto nunca tivesse acontecido, mas o certo é que nem agora, na situação em que me encontro, tenho forças para o tal. Isto porque tenho a impressão de que, uma vez pronunciadas certas palavras, as coisas entre nós ficarão irremediavelmente estragadas, sem conserto possível. Por isso, tomei a decisão de guardar tudo para mim e desaparecer do mapa.

Custa-me muito dizer isto, mas contigo nunca soube o que era o verdadeiro prazer sexual, nem antes nem depois do casamento. Fazer amor contigo era maravilhoso, mas tudo o que sentia, naqueles momentos, eram sensações vagas, tão vagas que dir-se-iam pertencer a outra pessoa. A responsabilidade de não ser capaz de sentir nada era cem por cento minha. Dentro de mim havia como que uma espécie de obstáculo que me impedia de aceder ao prazer sexual. Quando, por razões que não sou capaz de explicar, fui para a cama com aquele homem, o bloqueio desapareceu de repente, deixando-me completamente desatinada.

Entre nós os dois houve sempre, desde o princípio, algo de muito íntimo e delicado. Agora, porém, também essa alquimia se desvaneceu. Aquele mecanismo perfeito, quase mítico, ficou destruído. E quem o destruiu fui eu. Falando mais precisamente, houve algo que me fez destruí-lo. Que isso tenha acontecido, ninguém lamenta mais do que eu. Nem toda a gente tem a sorte de dispor de uma oportunidade como a que eu tive contigo. Odeio com todas as minhas forças a existência dessa coisa que me provocou tudo isto. Nem fazes ideia o ódio que lhe tenho. Quero saber ao certo do que se trata. Tenho de saber concretamente o que é. Devo encontrar as suas raízes, erradicá-la, julgá-la, castigá-la. Terei forças para o fazer? Não estou bem certa disso. De qualquer modo, é uma coisa que só a mim diz respeito, nada tem a ver contigo.

Só te peço que daqui em diante não te preocupes mais comigo. Esquece-me e procura refazer a tua vida. Quanto à minha família, vou escrever-lhes a dizer que a culpa do que aconteceu foi minha, e só minha, e que tu não és tido nem achado no que diz respeito a esta questão. Não creio que te venham causar problemas. Penso que devemos dar de imediato início aos trâmites do divórcio. Creio que será a melhor solução para os dois. Peço-te por tudo que não te oponhas e dês o teu consentimento. No que toca à minha roupa e ao resto das minhas coisas, deita tudo para fora, dá a quem precisa ou faz o que achares melhor. Fazem parte do passado. Perdi direito a todas as coisas que usei durante a nossa vida em comum, sinto isso.

Adeus.”

Haruki Murakami, “Crónica do Pássaro de Corda”

Foto: Isabel Madureira

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