domingo, 24 de abril de 2011

A assimetria da expectativa

No decorrer do dia esperavas ansiosamente por este momento, abres o armário e escolhes diferentes combinações de roupa. Sentes que tudo tem de ser feito com primazia e a tua opinião contrasta com o receio da decisão. Após consecutivos segundos à frente do espelho, semicerras os olhos e esbanjas uma sensualidade entediante. Olhas para o relógio e apressas-te numa tentativa infrutífera de disfarçar o atraso. Ao som de uma azáfama urbana e depois de meia dúzia de fintas de corpo, chegas ofegante, à carruagem que te levará a ser personagem principal, num filme recriado inúmeras vezes. A pulsação abranda e aos poucos deixas-te embalar pelo conforto daquele tecido coçado, aconchegaste bem e aproveitas o reflexo do vidro para retirar o estojo de maquilhagem. As tuas mãos apresentam uma pele macia e as unhas pintadas num tom rosa clarinho, fazem-te sentir ainda mais sensual. Depois de um toque de blush, rodas o batom cor de vinho e realças as linhas dos teus lábios. Sentes-te observada, mas neste teu mundo, os ciúmes são sentimentos desprezíveis.

Através do sistema de som, ouves uma voz enfadonha que te faz esboçar um sorriso e aumentar o ritmo cardíaco, estás a chegar ao teu destino. Ao fim de poucos minutos, a carruagem pára, dás um último jeito ao cabelo e o teu olhar ganha um brilho momentâneo, percorres aqueles corredores apertados e a ansiedade vai-se apoderando de todos os teus músculos.
Deslizas para a plataforma num passo tímido e respiras todo aquele alvoroço, um misto de emoções que te envolve numa melancolia desproporcionada. Percorres o horizonte com astúcia e os teus olhos obedecem a uma imagem que predomina todas as tuas lembranças. Ao teu redor, as pessoas começam a dispersar e um sentimento confrangedor enobrece a desilusão daquele instante.

Tudo acontece por uma razão, pensas. Apetece-te gritar, mas só te questionas “Quanto tempo demorará a chegar?”

Filipe Almeida

One Night Only - Hide

Artista da Semana: One night only

Álbum: Started a fire (2008)

Música: Hide

Recomendação: 3/5

sexta-feira, 22 de abril de 2011

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Crescer a cores - Eduardo Sá

“Numa história muito bonita que me contaram, vivia um homem que, sempre que sonhava, via os seus sonhos concretizarem-se todos os dias. Como imaginas, ansiava sempre por novos sonhos e, mesmo que não quisesse, sentia os seus sonhos como uma janela com que crescia a cores.
Até que, um dia, sonhou que morria. E, sentindo-se traído pelo sonho, recusou acordar, evitando ir além do sonho (que talvez seja o maior desafio que um homem pode ter). Para não ter de o enfrentar, refugiou-se no sono… e morreu a dormir.
Será talvez esse o maior risco que se corre aos 15 anos: adormecer quando se cresce, imaginando que o melhor da vida são os sonhos quando, na verdade, o que lhes dá cor ao crescimento é ir – sempre – além deles.”

Eduardo Sá "Tudo o que amor não é"
Foto: Manuel Madeira

Em nome da memória - Ann Brashares

A minha próxima "companhia".


“Vivi mais de mil anos. Morri inúmeras vezes. Quantas ao certo, não sei. A minha minha memória é uma coisa extraordinária, mas não é perfeita. Sou humano.
As primeiras vidas confundem-se um pouco. O arco da nossa alma segue o padrão de cada uma das nossas vidas. É macrocósmico. Houve a minha infância. Houve muitas infâncias. E mesmo na parte inicial da minha alma atingi a idade adulta muitas vezes. Hoje, em cada uma das minhas infância, a memória advém mais depressa. Nós executamos os movimentos, as acções. Olhamos de uma forma pouco vulgar para o mundo que nos rodeia. Recordamo-nos.”

Ann Brashares, “ Em Nome da Memória”
Foto: Nuno Bernardo

quarta-feira, 20 de abril de 2011

O caminho mais fácil

"(...)Não podia ser o meu verdadeiro eu. Essa é a única explicação que me ocorre. Agora, será esta a verdade? Poderá toda esta história terminar de uma forma assim tão simples? E, a ser verdade, qual é então o meu verdadeiro eu? Existe algum fundamento legítimo que me permita pensar que quem está agora a escrever esta carta possa ser o meu verdadeiro eu»? Nunca tive a certeza de ser quem era, e continuo, até hoje, sem saber quem sou.(...)"

FIM


Haruki Murakami "Crónicas do Pássaro de Corda"

terça-feira, 12 de abril de 2011

Mudanças

No horizonte fica a esperança e nas caixas de cartão deixamos as recordações. Caminhamos como nómadas sempre com um destino temporário, sempre resignados com a sagacidade da distância. A minha morada é um “vale nada”, que tanto gosto de viver. As pessoas, os regionalismos, as culturas e todos os momentos que vivemos só porque a distância está no limiar de um cruzamento, que acabas de perder de vista. Cada lugar é, aparentemente, um espaço patético onde a superfície é delineada por fibras sintéticas que fazem cócegas nos dedos dos pés, aparentemente, a realidade destas cócegas denotam uma indemnidade que atenua qualquer virtualismo que o desconhecido possa provocar. Porquê correr, se posso caminhar? Não perco tempo a tentar definir o passo seguinte...Afinal não sou assim tão demente, afinal o “vale nada”, vale uma esperança auspiciosa que enobrece a possibilidade de acontecer.


Filipe Almeida

Foto: Internet

Curtas XV - A Crise


"Quando se trata de destruir, todas as ambições se aliam facilmente"


Júlio Verne
Foto: Hugo Mota

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Jeff Buckley - Everybody here wants you

Artista da Semana: Jeff Buckley

Álbum: So Real: Songs from Jeff Buckley (2007)

Música: Everybody here wants you

Recomendação: 5/5


sexta-feira, 1 de abril de 2011

Os livros que não se deixam folhear - Eduardo Sá

Os livros que não se deixam folhear

"Ninguém cresce vazio, por mais que, num olhar de fugida, se sinta assim. Quem nos preenche são as pessoas. Mesmo que, da sua presença no nosso crescimento, fique como rasto um aparente e interminável vazio.
O vazio é indissociável da «conta-corrente» das nossas relações mais significativas. Anuncia um estado deficitário que, se acumula, nos empurra para um enorme «tanto faz». Na verdade, o vazio é a bruma com que protegemos, dos nossos ressentimentos, as pessoas que transformam o mundo interior numa biblioteca que se foi preenchendo com livros que nunca se deixaram folhear.
O vazio é uma depressão sem se estar triste. Uma dor que adormece devagar.
Será altura de folhear os livros ou mesmo de «começar de novo», com pessoas que o preencham mais e lhe devolvam a vida interior que, muitas das que fazem parte de si lhe terão tirado."

Eduardo Sá "Tudo o que amor não é"