segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Infidelidades - Parte 4/5

Continuação da parte 3.

“(…) Chegou um dia e ele pediu-me que te deixasse e que fosse viver com ele. Dizia que nós tínhamos sido feitos um para o outro, que não havia razão para não estarmos juntos. Que também ele abandonaria a sua família. Pedi-lhe que desse um tempo para pensar. Depois de nos despedirmos, no comboio, no regresso a casa, de repente percebi que já não sentia nada por ele. Não sei explicar por que razão, mas no instante em que surgiu a ideia de vivermos juntos, aquela atracção misteriosa alojada dentro de mim desapareceu, como que varrida por um violento tornado. Não sentia por ele o mínimo desejo.

Foi a partir daí que comecei a sentir-me culpada. Tal como te disse antes, enquanto senti por ele um intenso desejo sexual nunca conheci o mínimo sentimento de culpabilidade. Só estava interessada em certificar-me de que não desses conta de nada. Pensava eu que podia fazer o que me desse na gana, na condição de que tu não te apercebesses disso. A minha relação com ele e a minha relação contigo pertenciam a dois mundos diferentes. Quando o meu desejo por ele se desvaneceu, senti-me completamente perdida.

Sempre me tivera na conta de uma pessoa honesta. Escusado será dizer que tenho muitos defeitos, mas, no que toca às questões importantes, nunca tinha mentido a ninguém nem me enganara a mim própria. Nunca te tinha escondido nada, e isso representava aos meus olhos um motivo de orgulho. E, no entanto, durante meses a fio andei a mentir-te descaradamente sem sentir uma ponta de remorso.

A bem dizer, foi essa a verdade que começou a atormentar-me. Comecei a sentir-me uma pessoa vazia, sem valores nem interesse. Vendo bem, se calhar é isso mesmo que sou. Além disso, há outra coisa que me preocupa, e muito: por que senti de repente um desejo anormal e irreprimível por um homem que não amava? Não consigo compreender porquê. Se não fosse aquele desejo, hoje ainda estaria a teu lado, a viver feliz e contente. E aquele homem não passaria de um amigo com quem poderia trocar dois dedos de conversa, de vez em quando. A verdade, porém, é que aquele desejo louco, deitou tudo por terra e reduziu a nada tudo o que nós tínhamos construído juntos, pouco a pouco, durante anos. E deixou-me ficar sem nada: levou-te a ti, ao lar que tinha constituído contigo, ao meu trabalho. Por que carga de água é que me foi acontecer uma coisa assim?(…)”

Haruki Murakami, “Crónica do Pássaro de Corda”

Curtas XIII - O triunfo



"A vida nunca é fácil para aqueles que sonham."


Robert James Waller
Foto: José António

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Fusão de Sentidos


Ninguém acredita! Tentamos marcar a diferença, movidos por valores quase extintos devido à imprudência de falsos crentes, que reduziram o possível num tesouro difícil de alcançar.

A possibilidade foge a cada dia que passa, como se tivessem a dar-nos a mão e por meros milímetros não as conseguimos alcançar. Estivemos tão perto, como o limite do solo com o abismo. E com o tempo perdemos a fé. Não aquela fé religiosa, mas a fé pessoal, onde criamos todos destinos, onde se cria todas as ilusões, nas quais a credibilidade assume a diferença entre o essencial e o indispensável.

Quantas vezes somos capazes de desistir de alguém que amamos? E o amor próprio? Será essa a condição de tanta persistência?

Neste mundo criado a preceito, ouvem-se as sirenes sempre que o momento se reduz num enigma e a invisibilidade se torna tangível a uma vulgar troca de sentidos. Chama-se a fusão de sentidos.

(Olfacto+Tacto+ visão+ Audição+ Paladar) / (Frente+Trás+ Direita+ Esquerda+ Cima+Baixo) = Sentimento <=> (Olfacto+Tacto+ visão+ Audição+ Paladar)/Sentimento = Várias direcções <=> Amor ≈ Sem Sentido

Talvez a persistência no amor não tenha sentido. Sempre que tenhas dúvidas que ele seja possível, desisti, porque não haverá solução.

Filipe Almeida

Foto: Internet

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Foals - What Remains

Artista da Semana: Foals

Álbum: Total Life Forever (2010)

Música: What Remains

Recomendação: 5/5

Dia 9 de Julho no Optimus ALIVE 2011, lá estarei :)

Ana Garcia Martins - Só sei que muito sei

"Tenho 30 anos e não sei nada sobre o amor. Gostava de poder dizer “quem me dera ter 20 anos e saber o que sei hoje”, mas seria pretensão. Porque não sei nada. Durante muito tempo achei que amor era viver com o coração nas mãos, no pescoço, no estômago, pronto a explodir e a projectar-se em mil pedaços. Gostar, gostar a sério, aquele gostar de paixão, só podia ser isso. Viver em ânsia o tempo todo, correr atrás, pedir, implorar, pedir de novo, pôr-me em bicos de pés e anunciar a minha presença. Fazer uma gestão de danos a todo o momento, tentar não incomodar, não estar a mais, dar, dar, dar e receber quase nada em troca. Achar que esse pouco era mais do que suficiente, que mais vale pouco do que nada. E foi isso. Achei sempre que pouco era melhor do que nada. A triste realidade é essa. Já não me lembro de quantas vezes me senti remediada, assim-assim, vai-se andando. De quantas vezes parti a alma e de quantas a voltei a colar. De quantas vezes me apaixonei e de quantas jurei para nunca mais. Que as coisas do amor não eram para mim e mais valia estar quieta. Uma treta. Nunca conseguir estar quieta. E via os acidentes emocionais a darem-se e não podia fazer nada para os evitar. Nem sequer fechava os olhos para não ver. Meti-me em muitas relações sem cinto de segurança, e depois achava estranho fazer mais uma fractura no espírito. As cicatrizes que para aqui vão. A verdade é que sempre fui uma crente, uma utópica, uma arrebatada. Uma totó, a palavra não é outra. Se calhar ainda sou, mas de aliança no anelar esquerdo. Afinal, amor podia ser outra coisa que não uma sofreguidão desatada, uma correria sem meta à vista. Afinal, comecei a perceber, amor era 50/50. E dias mais calmos. E tardes no sofá. E filmes, e séries, e amigos à mesa. E conversas, e planos, e os nomes dos filhos que se quer ter. E uma conta corrente, este mês pago eu a empregada e tu a conta da luz. E dizer que um cão num apartamento nem pensar. E voltar atrás e dizer que sim, haja espaço e boa vontade. E pegar num mapa e ver quanto mundo nos falta ver. E decidir quem desce a pé os três andares para deixar o lixo, quem se arrasta para tratar da louça, quem encaminha a roupa para os armários, quem atira com a carne para o forno (ontem fui eu, hoje és tu). Gosto deste amor. Gosto muito deste amor que me dá beijos quando chego a casa, que não vive imerso em dúvidas existenciais e pós-modernas, que há já algum tempo que sabe o que quer. E que me quer a mim. Disse-o no altar, à frente de todos. Estava lá e ouvi. Retiro o que disse. Tenho 30 anos e sei quanto baste sobre o amor. Quem me dera ter 20 e saber o que sei hoje"

Ana Garcia Martins, Jornal Metro


sábado, 19 de fevereiro de 2011

Infidelidades - Parte 3/5


Continuação da parte 1 e parte 2.

“(…) Porque que é que aquele desejo tinha surgido em mim, assim tão de repente? E porquê com alguém que não eras tu? Não sei o que dizer. O que sei é que, naquele momento, não consegui controlar-me. Nem sequer fiz por isso. Por favor, procura entender: nunca me passou pela cabeça que te pudesse estar a enganar. Na cama daquele hotel, fiz amor com aquele homem como uma possessa. Para ser sincera, nunca na minha vida me tinha sentido tão bem. Minto, não foi assim tão simples: «tão bem» é dizer pouco. Tinha a sensação de estar a rebolar em lama quente. A minha mente absorvia de tal maneira o prazer em estado puro, que inchava ao ponto de estalar. E a seguir explodiu. Qualquer coisa de prodigioso. Uma das coisas mais maravilhosas que alguma vez me aconteceu.

E a seguir, como tu sabes, escondi de ti essa ligação. Tu nunca te deste conta de que eu te era infiel e nunca suspeitaste de nada, nem mesmo quando eu chegava tarde e a más horas a casa. De tal maneira confiavas cegamente em mim, que nunca pensaste que um dia poderia atraiçoar-te. E, no entanto, nunca soube o que era o sentimento de culpa. Às vezes ligava-te do quarto de hotel para te dizer que ia chegar mais tarde por causa de uma reunião de trabalho. Dizia uma mentira a seguir à outra sem experimentar o mínimo remorso. Fazia aquilo como se fosse a coisa mais natural do mundo. No meu coração, ansiava pela vida a teu lado. O nosso lar era o lugar onde devia regressar. O mundo ao qual eu pertencia. Apesar disso, o meu corpo sentia um violento desejo de sexo com aquele homem. Uma metade de mim estava em casa, contigo, a levar uma vida tranquila ao teu lado, a outra metade, ali, a fazer amor desenfreadamente com aquele homem.

Quero que entendas ao menos uma coisa: não se dava o caso de tu seres sexualmente inferior a ele, ou de eu estar cansada de fazer amor contigo. O que aconteceu foi que, naquele momento, o meu corpo sentia um apetite voraz, irrefreável. E não pude controlar-me. Não sei dizer-te porque aconteceu. Só te posso dizer que as coisas aconteceram assim. Durante o período em que tive relações com ele, pensei várias vezes em fazer também amor contigo. Parecia-me injusto ir para a cama com ele e contigo não, mas a verdade é que nos teus braços não sentia rigorosamente nada. Deves ter dado por isso. Foi por essa razão que, nos últimos meses, inventei toda a espécie de desculpas para não ter relações sexuais contigo. (…)”

Haruki Murakami, “Crónica do Pássaro de Corda”

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

domingo, 13 de fevereiro de 2011

O que é mais valioso?


Não me perguntes para onde vou, porque hoje a liberdade é o meu cicerone. Caminho entre dias claros e desejos singelos onde tudo é autêntico, onde tudo é secretamente apetecível. No ar entoam sinfonias de violinos que transformam a escolha em virtudes displicentes, assim como, o rebento debocha numa flor cativante, eu envolvo-me nesta natureza lograda. Os diamantes são feitos sobre pressão, valiosos mas duros. O maracujá tem um aspecto dúbio, é acarinhado por quem o planta, tem uma flor deslumbrante e um sabor deleitante. Associando a sociedade a este ruralismo ilusório, não deixo de caminhar com o aspecto dúbio de quem anseia nunca ser cúmplice de uma pressão enganadora. Afinal, o que é mais valioso?


Filipe Almeida


Pablo Neruda - Quem Morre?

"Morre lentamente quem não viaja,

quem não lê,

quem não ouve música,

quem não encontra graça em si mesmo.


Morre lentamente quem destrói o seu amor-próprio,

quem não se deixa ajudar.


Morre lentamente quem se transforma em escravo do hábito,

repetindo todos os dias os mesmos trajectos,

quem não muda de marca,

não se arrisca a vestir uma nova cor

ou não conversa com quem não conhece.


Morre lentamente quem faz da televisão o seu guru.


Morre lentamente quem evita uma paixão,

quem prefere o negro sobre o branco

e os pontos sobre os "is"

em detrimento de um redemoinho de emoções

justamente as que resgatam o brilho dos olhos, sorrisos

dos bocejos, corações aos tropeços e sentimentos.


Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz com o seu trabalho,

quem não arrisca o certo pelo incerto para ir atrás de um sonho,

quem não se permite pelo menos uma vez na vida fugir dos conselhos sensatos.


Morre lentamente, quem passa os dias queixando-se

da sua má sorte ou da chuva incessante.


Morre lentamente, quem abandona um projecto antes de iniciá-lo,

não pergunta sobre um assunto que desconhece

ou não responde quando lhe indagam sobre algo que sabe.


Evitemos a morte em doses suaves,

recordando sempre que estar vivo exige um esforço muito maior que o simples facto de respirar.


Somente a perseverança fará com que conquistemos um estágio esplêndido de felicidade."


Pablo Neruda

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Sonhos sem Ilusões - Fernando Pessoa



"Saber não ter ilusões é absolutamente necessário para se poder ter sonhos. Atingirás assim o ponto supremo da abstenção sonhadora, onde os sentimentos se mesclam, os sentimentos se extravasam, as ideias se interpenetram. Assim como as cores e os sons sabem uns a outros, os ódios sabem a amores, e as coisas concretas a abstractas, e as abstractas a concretas. Quebram-se os laços que, ao mesmo tempo que ligavam tudo, separavam tudo, isolando cada elemento. Tudo se funde e confunde."

Fernando Pessoa, in 'O Livro do Desassossego'
Foto: José Menezes